domingo, 7 de agosto de 2011

O direito à diferença nas escolas

Maria Teresa Eglér Mantoan


Pautadas para atender a um aluno idealizado e ensinando a partir de um projeto escolar elitista, meritocrático e homogeneizador, as escolas produzem quadros de exclusão que têm, injustamente, prejudicado a trajetória educacional de muitos estudantes.
Por processos compensatórios e de normalização as escolas comuns e especializadas proclamam o seu poder e propõem sutilmente, com base em características devidamente selecionadas como positivas, a eleição arbitrária de uma identidade “normal” que regula as suas práticas educativas e a promoção de seus alunos.
Contrariar a perspectiva de uma escola que se pauta por esses padrões conceptuais e organizacionais é fazer a diferença, reconhecê-la e valorizá-la.
Somos diferentes de fato e queremos ser, agora, diferentes de direito, na escola e fora dela. Pautamo-nos pelo direito de ser, sendo diferentes.(Pierucci, 1991).Vale, contudo, a ressalva de sermos iguais, quando a diferença nos inferioriza e de sermos diferentes, quando a igualdade nos descaracteriza.(Souza Santos, 1995)
Conviver, reconhecendo e valorizando as diferenças é uma experiência essencial à nossa existência, e um caminho para que se ensine a paz, a solidariedade entre as pessoas. Mas, é essencial que definamos a natureza dessa convivência, distinguindo o estar com o outro do estar junto ao outro.
Estar junto ao outro tem a ver com o que o outro é – um ser que não é como eu sou, que não sou eu. Essa relação forja uma identidade, imposta e forjada e rotulada pelo outro.
Estar com o outro tem a ver com quem é esse outro, esse desconhecido, um enigma, que tenho de decifrar, e que vai sendo desvelado, na medida em que se constrói entre nós um vínculo, pelo qual nos confrontamos, nos identificamos e nos constituímos como seres singulares e mutantes. (Silva,2000)
No desejo de assegurar a homogeneidade das turmas escolares, destruíram-se muitas diferenças que consideramos valiosas e importantes, hoje, nas salas de aula e fora delas.
Mas a identidade fixa, estável, acabada, própria do sujeito cartesiano unificado e racional está em crise (Hall, 2000) e a idéia de uma identidade móvel, volátil é capaz de desconstruir o sistema de significação excludente, elitista da escola atual, com suas medidas e mecanismos arbitrários de produção da identidade e da diferença.
Se o mote é uma educação para a paz, temos, então, de assumir uma posição contrária à perspectiva da identidade “normal”, que justifica a falsa uniformidade das turmas escolares.
A diferença é, pois, o conceito que se impõe para que possamos defender a tese de uma escola para todos.
De certo que as identidades naturalizadas dão estabilidade ao mundo social, mas a mistura, a hibridização, a mestiçagem as desestabilizam, constituindo uma estratégia provocadora, questionadora e transgressora de toda e qualquer fixação da identidade. (Silva 2000; Serres 1993)
A escola tem resistido a mudanças exigidas por uma abertura incondicional às diferenças, porque as situações que promovem esse desafio e mobilizam os educadores a rever e recriar suas práticas e a entender as novas possibilidades educativas trazidas pela inclusão estão sendo constantemente neutralizadas por políticas educacionais, diretrizes, currículos, programas compensatórios (reforço, aceleração entre outros). Esta saída tem permitido às escolas escaparem pela tangente e a se livrarem do enfrentamento necessário com sua organização pedagógica excludente e ultrapassada.

Diferença e deficiência

Temos de estar sempre atentos porque, mesmo sob a garantia do direito de todos à educação, a diferença pode ser lançada na vala comum dos preconceitos, da discriminação, da exclusão.
Inúmeras propostas educacionais, que defendem e recomendam a inclusão, continuam a diferenciar alunos pela deficiência, o que está previsto como desconsideração aos preceitos da Convenção da Guatemala, assimilada pela nossa Constituição/88, em 2001 e que deixa clara a impossibilidade de diferenciação com base na diferença, definindo a discriminação como toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência.[...] que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte de pessoas com deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais ( art.I, nº 2, “a”). De acordo com o princípio da não discriminação, trazido por essa Convenção, admitem-se as diferenciações com base na deficiência apenas com o propósito de permitir o acesso ao direito e não para se negar o exercício dele!
A Constituição de 88 celebrou o direito de todos à educação e acrescentou às pessoas com deficiência o direito ao “atendimento educacional especializado”. Esse atendimento é complementar ao ensino escolar e assegura aos alunos com deficiência as condições que lhes são indispensáveis para que tenham acesso e freqüência à escolaridade, em escolas comuns.
A diferenciação pela deficiência, neste caso, não é discriminante porque o “atendimento educacional especializado” visa à remoção de obstáculos que impedem esses alunos de acompanhar as aulas nas turmas comuns. O ensino da Língua Portuguesa, como segunda língua para os surdos, as noções de mobilidade e de locomoção para cegos e outros conhecimentos específicos são exemplos dessa diferenciação.
Mas o encaminhamento direto de alunos com deficiência de escolas comuns para escolas especiais além de ser uma diferenciação pela deficiência, desrespeita o direito indisponível de todos à educação, dado que o ensino especial é uma modalidade que perpassa todos os níveis de ensino – das etapas do básico às do superior, mas não pode substituí-los!

Adaptar ou mudar as práticas escolares?

Grande parte dos professores das escolas comuns e especializadas e de profissionais da área clínica acreditam que ensino escolar individualizado e adaptado é o ideal e o mais adequado para atender em suas necessidades escolares, aos que têm dificuldades de aprender e aos alunos com deficiência, principalmente quando se trata de educandos com deficiência mental. Os grupos dos alunos mais fracos, que não conseguem acompanhar o restante da turma, e até mesmo os dos mais fortes e adiantados são redutos de excluídos e neles, via de regra, ficam limitadas as possibilidades de progresso no aprendizado escolar.
Toda adaptação escolar predefinida pelo professor ensina o aluno a ser dependente, limitado, reativo, negando-lhe a oportunidade de construir conhecimentos, segundo as suas capacidades, como nos garante a Constituição em seu artigo 208, V. É ainda uma maneira de manter a velha fórmula de decidir pelo outro, de impor-lhe um padrão de normalidade, de superioridade ou de inferioridade estabelecidos por relações de poder/saber hegemônicas, que controlam de fora o que o aluno pode ou não pode ser, aprender e conhecer.
Adaptar o ensino para alguns alunos de uma turma não conduz a uma transformação pedagógica das escolas, exigida pela inclusão. Esta inovação implica em uma mudança de paradigma educacional, que gera uma reorganização das práticas escolares: planejamentos, formação de turmas, currículo, avaliação, gestão do processo educativo.
Baseada nos propósitos e procedimentos de ensino que decidem “o que falta” ao aluno de uma turma de escola comum, a adaptação funciona como um processo regulador externo da aprendizagem. Em outras palavras, quando adaptamos currículos, selecionamos atividades e formulamos provas diferentes para alunos com deficiência e/ou dificuldade de aprender, interferimos de fora, submetemos esses alunos ao que supomos que eles sejam capazes de avançar, de se desenvolver e assim perpetuamos o ensino segregado, a discriminação e a diferenciação pela deficiência.
Na versão inclusiva, a adaptação é testemunho de emancipação intelectual e conseqüência do processo de auto-regulação da aprendizagem, em que o aluno assimila o novo conhecimento, de acordo com suas possibilidades de incorpora-lo ao que já conhece.
Entender este sentido emancipador da adaptação intelectual é importante, pois muitos confundem adaptação com o que é exigido dos alunos na modalidade de inserção conhecida como “integração escolar”, na qual os alunos com precisam se adaptar às exigências da escola para não serem excluídos e/ou encaminhados a serviços de educacionais segregados, onde se preparam para poder cursar a escola comum! Surgem daí equívocos que justificam a “adaptação curricular” e outros aparatos pedagógicos limitantes, que não caminham na direção de um ensino verdadeiramente inclusivo, pois conservam o propósito anterior de prever “o que falta ao aluno”, de prejulgar suas possibilidades de aprendizado.
Nunca é demais lembrar que aprender é uma ação humana criativa, individual heterogênea e regulada pelo sujeito da aprendizagem, independentemente de sua condição intelectual ser mais ou ser menos privilegiada. São as diferentes idéias, opiniões, níveis de compreensão que nos enriquecem e que clareiam o nosso entendimento – essa diversidade deriva das formas singulares de nos adaptarmos cognitivamente a um dado conteúdo e da possibilidade de nos expressarmos abertamente. Ensinar, por sua vez é um ato coletivo e homogêneo, que o professor realiza, disponibilizando a todos um mesmo conhecimento.
Ao invés de se resistir à inclusão, declarando-se despreparada para atender a todos os alunos, amparada na “pseudo-necessidade” de adaptar e individualizar/diferenciar o ensino para alguns, a escola comum deveria estar recriando suas práticas, mudando suas concepções, revendo seu papel e reconhecendo e valorizando as diferenças.
Pelo direito de ser, sendo diferente, o aluno com e sem deficiências, já deveria estar vivendo a liberdade de aprender, tendo o reconhecimento e a valorização de seus mestres pelo que conseguisse construir no domínio intelectual, segundo suas possibilidades.
Assegurar o direito à diferença é ensinar a incluir e, se a escola não tomar para si esta tarefa, a sociedade continuará perpetuando a exclusão nas suas formas mais sutis e mais selvagens e, certamente, a paz será apenas um sonho inatingível e a educação, um processo a mais, que nos desumaniza e embrutece.

Referências bibliograficas:

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade; trad. Tomás T. da Silva e Guacira L. Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

MORIN, Edgard.A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

SANTOS, Boaventura de Souza. Entrevista com Prof. Boaventura de Souza Santos. (On line). Disponível: http://www.dhi.uem.br/jurandir/jurandir-boaven1.htm, 1995.

SERRES, Michel. Filosofia Mestiça: le tiers – instruit. Trad. Maria Ignez D. Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1993.

SILVA, Tomás Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000.

PIERUCCI, Antonio. Flávio.As ciladas da diferença.São Paulo: Editora 34, 1999.

In: http://styx.nied.unicamp.br:8080/todosnos/acessibilidade/textos/revistas/DireitoADiferencaEscolas.doc/view Acesso em 03/05/2010 20:00hs

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